30/06/2015

Hoje eu era a mãe do presidente

«De qual deles?»
(Mãe de Dwight Eisenhower, quando lhe perguntaram se sentia orgulho do seu filho)

~

Encontrei uma ex-professora, que me abriu os braços e me disse:
- Parabéns, mãe, está mesmo de parabéns!
E eu, tal e qual a mãe do presidente, perguntei:
- Por qual deles?



Não me aguento de tanto amor por elas!


Quem souber quem fabrica estas pequenas maravilhas, chega lá num instante, mas eu não vou dizer a proveniência, não vá dar-se o caso de alguém pôr a hipótese de me terem sido dadas (oh, heresia!), vendidas com 50 % de desconto (oh, blasfémia!), ou me ter sido pedido que fizesse este post. Nem uma coisa, nem a outra, nem a aqueloutra. Paguei-as com 100 % de custo, com o esforço do meu trabalho, auto-ofertei-me uma prenda, ficam-me a matar, fazem de mim a gaja mais gaja do meu bairro e de todos os supermercados, ele é ver-me na praça, na padaria, na farmácia, nos transportes públicos e no teleférico, ele é na montanha, na praia, na piscina municipal, no ski e no barco à vela, ele é em asa-delta, em biquíni, em parapente, em string, em bungie jumping, em para-quedas e em cueca da avó, isto só para dar exemplos da versatilidade das minhas novas lindinhas, que são tão, mas tão confortáveis, que tomara a Nike, a Adidas, a New Balance e a Vans, todas juntinhas, em parceria, fazerem qualquer coisa que servisse ao meu idoso e chato pé com a mesma perfeição que as minhas pitons me servem a mim. E o modelo tem um nome que eu amo de paixão e amor quase carnal: Madeleine.


Na cabeça das minhas gatas

Mia:
Odeio tudo.

Mel: 
Fiambre
Frango
Levem-me lá fora
Por que é que não me dão fiambre e frango, lá fora?
Lá vêm eles pegar-me ao colo
Eh, pá, agora estou de barriga para cima. Que bom. É melhor fingir que não gosto
Arranhar, arranhar
Agora estou cansada
Agora vou para o chão
Tenho sono. Vou dormir
Primeiro, vou limpar a minha pata
Olha a Mia. Está cada vez mais magra. Que medo. Vou-me esconder. Fogo, não caibo debaixo da cómoda. Tenho que comer menos
Olha, vem aí mais alguém. Vou segui-los. Já me toparam. Vou comer da taça, para disfarçar
Comer, comer, comer
Vou dormir
Dormir

[post escrito a quatro mãos, a meias com uma menina, sem parcerias nem subsídios cá desses]


29/06/2015

Ora então, vamos lá a aprender, de uma vez por todas, o significado da palavra patético

Eu devo ter tido a sorte de ter sido educada pela pessoa que conheço que melhor falava português, que era a minha mãe. E estou a conjugar no pretérito imperfeito, porque a minha mãe, hoje em dia, praticamente já não fala, embora o que diz, o diga na perfeição, sem erros de construção frásica rigorosamente nenhuns. Mesmo frases muito pequeninas, do tamanho dela, são perfeitinhas, como ela. Além disso, toda a nossa vida juntas, que é para sempre, falámos por metáforas, como fazem todas as mães com os seus filhos, mas nós mais ainda. Por exemplo, Estás a precisar de colo, não significa que eu vá esparramar os meus 59 quilos (na verdade, são 60, mas eu roubo sempre mil gramas ao meu peso, para me colocar na casa dos 50, o que me faz sentir muito mais leve e, na verdade, não deixa de ser mais uma metáfora), com quase 1,70 metros de altura, em cima de uma senhora com 1,53 por 35 quilos, mas sim que preciso de encostar a minha fervilhante testa no magríssimo ombro dela, e fazermos estalar beijos sonoros, daquela nossa maneira, como fizemos outro dia, que fizemos calar todas as conversas e interrompemos todos os silêncios daquela casa, só com a saraivada de beijos que nos trocámos. Ora cá está mais uma metáfora que só pode ter sido a minha mãe que me ensinou, pois os beijos não se dão em saraivada, mas sim em salva, de palmas e de prata, todos bem ritmados e dispostos com cuidado. E isto não é uma metáfora.

Foi também a minha mãe que, há muitos e muitos anos (como começam as histórias de fadas), num reino distante, onde vivíamos felizes, no nosso castelo em forma de apartamento, me ensinou que, contrariamente ao que eu imaginava — armada em erudita, pateta, quando queria dizer que alguma coisa era pateta —, patético não significa pateta, mas sim comovente

Eu nunca duvido de nada do que a minha mãe me tenha dito. Ainda assim, e porque as outras pessoas não têm que seguir esta minha regra sem excepção, fui confirmar em dois dicionários online, sendo que um deles remete para o Dicionário da Porto Editora. E eu gosto, particularmente, desta explicação: 

O termo patético deriva do latim pathetĭcus que, por sua vez, tem origem num vocábulo grego que significa “comovente” ou “que impressiona”. Segundo o Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora, este adjectivo qualifica algo que é capaz de suscitar piedade ou de despertar emoções intensas como a tristeza, a dor ou ainda a melancolia. Por exemplo: “Inconsolável, a mãe da vítima soltou um patético grito de dor”, “O gesto patético de tristeza do condenado não deixou ninguém indiferente”.

Portanto, se alguma vez alguém vos disser Tu és patético, agradeçam — porque se terão cruzado com um pateta que, certamente, ficará apatetado com o vosso agradecimento.

Ser comovente é comovente. 






Este fim de semana passei-me dos cornos duas vezes

Cais da idade, cais das hormonas, cais da canícula, cais carapuça, mas é o genital. 
Foram dois estímulos nervosos, foram dois incentivos, foram duas vezes.
Dá uma pelo corno direito e uma pelo corno esquerdo. Tenho a cabeça equilibrada, obrigada.
E ambas no ginásio, o que me leva a crer que, neste momento, nem que abram a porta de par em par, eu consigo por lá entrar, de tão repassados que estão os meus cornos. Muuuu.

A primeira, já relatei aqui e ó, foi bonito, o vosso silêncio. Quando fala uma mãe estuporada, desembestada, de marmita perfurada, cala-se tudo, nem sempre para ouvir, a maior parte das vezes para não apanhar também, por tabela, que é como quem diz, a cinco tostões o berro. Mas tive razão, pois tive. Olha agora, meterem aquela preciosa cabecinha, que fui eu que fiz, à torreira do sol, a desidratar a jacto? E as meninges da menina? Inconscientes do genital. 

A segunda, foi logo a seguir: ontem.
Saio do meu duche, a escorrer água, que é com o que me lavo, no sentido descendente vertical, dirijo-me ao balneário e, logo aí, sofri um choque psicológico, que só não foi eléctrico porque devo ter um anjo da guarda daqueles todos musculadões e de costas largonas e asonas hiper-mega-xxl, e que me adora: andava a funcionária das limpezas a aspirar. Ora, como se sabe, água e energia eléctrica são muito amiguinhas, mas para nos electrocutar, que é um raio e um corisco de uma porra. Mas vá que, airosamente, contornei o cabo — que atravessava o balneário todo — e me dirigi para o meu cacifo. Mas aquele meu anjo é um brincalhão do genital que dizem que eles não têm, e pôs-me a figura a aspirar aonde? Hah, adivinharam: em cima do meu cacifo. A atravessar o cabo grosso do aspirador, a devassa, na porta dele. Desviou-o a contragosto, pois devia estar a saber-lhe bem aquela posição, eu abri o cacifo e ela desligou o aspirador — porque nem havia ali uma área de perto de cem metros quadrados para aspirar, tinham mesmo que ser aqueles cinquenta centímetros — e cruzou os braços.
Parece que aquilo me caiu mal.
Ainda assim, porque ando em processo de mutação para ameba proteus ou para santa, sorri-lhe.
E disse assim:
- Não espere para continuar, que eu vou-me vestir e isto demora.
Demora mas é uma merda, mas eu cá tinha os meus motivos, que iam crescendo em tamanho e forma, à medida que ela não descruzava os braços. É besuntar-me de creminho da raiz do cabelo às pontinhas dos pés, duas peças de roupa interior, um vestido e uma sandalete e ó ai ó linda. Mas ela queria festa rija, e ah!, a vaca era eu. Lá está a tal coisa dos cornos. 
Mas vá que ainda lhe quis dar uma oportunidade. Amorosa, eu. Devia ter levado um par de chapadas para acordar, logo assim que ela cruzou os braços, em vez de lhe dar uma oportunidade de redenção. 
- Deixe-me tirar as minhas coisas do cacifo, que eu visto-me ali. Já percebi que não pode interromper o seu trabalho.
E a pessoa nada. Nem obrigada nem és tão boa.
Foi o que a lixou e me fez a mim passar da caganita.
Não lhe disse nada, porque este país funciona enviezado no confronto social, e depois acusavam-me de classista, elitista, racista e de todos os istas pejorativos de que se lembrassem. 

Toda compostinha, tic-tic-tic, direitinha ao balcão,
- Vá lá ver o que se passa no balneário feminino. É meio-dia, isto fecha às duas e estão a fazer limpeza agora, donde, até às duas, alguém está a presumir que o chão não vai voltar a encher-se de pêlos, cabelos, unhas e sei lá que mais ADNs. Andam lá com um aspirador, numa zona onde passam pessoas acabadas de tomar banho. Fora a falta de educação de uma das pessoas que lá está, que, simplesmente, entendeu que tinha que aspirar o meu cacifo e, depois de eu me ter oferecido para lho disponibilizar, nem sequer me agradeceu. E, quer dizer, eu admito tudo, até lhe facilitei a vida, embora não concorde que se limpe com o balneário cheio de gente, mas não me agradecerem uma delicadeza, transtorna-me aquele nervo que só me dói nestas alturas.

Uma beleza. Tudo a marchar à minha frente.
Eu devia era ter ido para general, ou assim.

Pronto, pronto, já passou. Eu não tenho a PDM, não.
Só que, sabendo, como sei, que não posso mudar o mundo, ao menos se conseguir mudar o meu mundo, já fico mais calminha. Good girl.

And that awkward moment # 7

Em que recebes uma mensagem do vizinho, nos seguintes termos: 

Tenho fruta e legumes

E depois te entra, porta dentro, um cabaz de Natal, mas à Verão.


Juro pela minha saudinha — caia eu já aqui constipada, com litros de ranho a sair das fossas e gosma por todos os lados — que não mudei a posição a alguma coisa, só para o retrato. A única coisa que fiz, foi desviar uma das alfaces, que estava a tapar os outros.

28/06/2015

And that awkward moment # 6

Em que, a terminar uma aula de Pilates, o professor diz à turma que, de pé, pernas esticadas, ponham as mãos no chão, e tu pões. E começas a ver uma cabeça para baixo, depois outra, a seguir várias, e, quando olhas à volta, também tu de cabeça para baixo, vês a cara, virada ao contrário, de todas as outras trinta pessoas que estão contigo na sala.

E só quando te endireitas é que percebes que eras a única pessoa que estava de rabo virado para o professor.

É tão bom andar em contramão. Não percebo que tenham inventado aquele sinalito.

Ainda não lhe devolvi o Mickey, Maria Barroso

Este post vai revelar qualquer coisa de mim, mas isso é indiferente, dada a importância do que me traz aqui hoje. Continuem a assumir, assim como eu faço, que eu tenho 84 anos, e não se fala mais nisso.

Maria Barroso era a directora do Colégio quando eu fiz o jardim de infância. Directora a sério, à antiga, num registo muito moderno, que nem hoje, volvidos tantos anos, se pratica: acompanhava os recreios, percorria as salas de actividades e de aulas, inteirava-se do bom andamento do Colégio, conhecia educadoras, professoras, funcionárias, e alunos, um a um. Nada lhe escapava, creio que muito mais por interesse genuíno no bem-estar das pessoas e no funcionamento da instituição, do que por quaisquer outros motivos de elevação pessoal. De resto, a filha, Isabel Soares, era, também ela, à época, educadora de infância, tendo sido minha educadora por um ano lectivo daqueles três que ali passei.

Eu era uma formiga desasada, quando entrei na infantil. Ainda hoje não sei ao certo o motivo, talvez por ser sempre a mais nova das turmas todas (aniversário em Novembro, ser Escorpião não são só coisas boas), a mais baixa, a mais magrinha, a mais tudo o que não era conveniente. Tudo me parecia tão gigantesco e intransponível, desde as pessoas — especialmente as da minha idade —, ao edifício, à distância a que estava de casa (que era Campo Grande - Entrecampos, mas explicar isto a uma criança de quatro anos?). E, se estar entretida na sala já me custava o suficiente para que me lembre até hoje, as idas ao recreio eram qualquer coisa de semelhante ao que sentiam os cristãos no circo romano. Pronto, está bem, é exagero. Mas eram picos de stress, dos quais me lembro com demasiada nitidez, assumamos todos que oito décadas passadas. Sei que não chorava, não berrava, não barafustava. Mas devia ficar num transe tal, que a solução que a directora encontrou, foi — julgo que esgotadas todas as tentativas das auxiliares, esgotadas — ser ela própria a acompanhar-me no recreio. 

E lá andávamos, de mão dada, recreios inteiros, a conversar acerca de tudo o que é possível uma senhora, com a vida cheia e a cabeça a mil, como ela tinha, na altura — marido deportado e dois filhos jovens — e uma criança de quatro anos, tímida ao limite, conversarem. 

A mão que não segurava a minha, segurava um porta-chaves com o rato Mickey, que eu adorava e ela também. Enquanto passeávamos pelo recreio, ela emprestava-mo, quase mo dava, de tão meu ele me ficava. Mas, tocada a campainha, acabada a nossa prosa, o Mickey voltava-lhe para as mãos, só voltando a ser meu no dia seguinte. 

Um dia, devia estar eu mais fragilizada ainda, porque a timidez é um poço sem fundo, e qualquer pretexto se torna motivo detonador de mais e maior insegurança, pedi-lhe o rato Mickey, mas, desta vez, dado, para sempre, meu. Lembro-me da recusa, depois da hesitação, por fim da pena com que o desatarrachou da argola e mo deu para a mão, sem devolução ao toque da campainha. Não sei se teria sido um presente, se tinha um significado especial, se lhe cortei o coração à custa do meu coração sempre cortado, naquela época. A idade e o meu estado de alma naquele local não me permitiam mais, senão aquele egoísmo, que foi guardar o rato Mickey, como uma preciosidade que me era devida. 

E tenho-o, guardado, sim,  cá. Já não é meu, porque nunca me foi devido, o que fui percebendo, ao longo dos anos, à medida que cresci e, com ou sem a ajuda dele, me libertei quase totalmente da timidez. Está comigo, a torcer — e não sabemos se a rezar — pela recuperação da sua dona. E para as mãos dela voltará, assim que se dê o milagre em quem já ninguém acredita, a não ser, só talvez, uma miúda tímida de quatro anos e, quem sabe, um rato Mickey de porta-chaves.



Vós

Há um pequeno pormenor, na evolução da língua portuguesa, que não me entra na cabeça, mas também não me sai da cabeça. Não sei se me fiz entender. 
De acordo ou não com as regras do Acordo — e, grande parte delas, é não, e não, não me apetece explicar, porque está muito calor e também porque são muitos nãos —, a mim, pobre semi-analfabeta, parecia-me mais urgente, moderno e lógico acabar com a segunda pessoa do plural na gramática portuguesa, que era uma beleza.
Arrasava-se, de uma vez, com o artigo definido, definhado, e com a conjugação verbal, mais que morta, que nem o latim, com seus latinácios, a priori, ipsis verbis, e mutatis mutandis, está tão defunto quanto o vovós.
Andam os meninos a aprender na escola uma porra que não serve para nada, ocupando cabecinhas, perdendo tempo com essa grande inutilidade que é o vós, ganhando vícios de linguagem, aplicando-o incorrectamente como se fosse ele a segunda pessoa, sim, que é, mas do singular. A teimosia do mantimento do vós, teve como única consequência a criação dessa grande aberração, que é a quarta pessoa do singular. O grande fostes. O belo fizestes. O erudito acontecestes.

Assim, 
fizestes a cama?
Fostes à mercearia?
Sempre tivestes a mania.

(Este tempo verbal é, grande parte das vezes, acompanhado por aquela interjeição espantosamente elevada, que é o poças.)

Abulam o vós. O vós é inútil e é prejudicial. Não é usado na linguagem comum, não é usado na linguagem formal. Ninguém usa o vós e sua conjugação esdrúxula.
Ou melhor, usa. Usam, figuras de ficção. Figuras de humor (Estais-me a pôr fora da nossa claque? Sabeis o que sois ambos? Dois patifes!). 

Era substituírem o vós pelo vocês, que, esse sim, é usado e abusado, tanto na fala como na escrita. E sim, a conjugação verbal ia repetir a da terceira pessoa do plural. Pois ia, e então? Não é o que acontece já, na prática? Então, não ia — já repete. Vocês vão; Eles vão. Vocês irão; Eles irão. Isso também acontece noutras línguas, como a inglesa e a alemã, e não é por isso que ingleses e alemães falam incorrectamente, ou têm uma gramática desfasada da realidade.
Como nós temos. Como vós tendes. Como vocês têm. Como eles têm. 
A sério: vós? Do tempo dos avós, isso sim.
Vós...
Agora, é até que a voz me doa.

27/06/2015

O ancinho não serve para nada

Estava eu outro dia a meditar, e a dizer para com os meus botões, fecho éclair, colchetes e aviamentos vários de retrosaria, mas sem cofiar o bigode, só porque não o tenho, senão até isso, que o ancinho da praia é aquele brinquedo inútil que se vende há décadas, remonta à minha meninice — que, convenhamos, ocorreu há extremamente —, a criança que é criança não lhe liga nenhuma, porque, efectivamente, e parafraseando-me, ele não serve para nada. Não me servia para nada a mim, nem serve a criança nenhuma, porque ninguém vai para a praia arar a areia, nem abrir estradas às riscas com ele, nem rasgar sulcos em construção nenhuma. Aquilo serve só para encher o kit, mas acredito que ai do kit que não traga ancinho, por uma questão de princípio e tradição.  Lembro-me claramente de escavar na areia até encontrar ouro, ora usando a pá, ora usando as mãos — e ainda tenho tão nítida a sensação dos grãos dentro das unhas, quando já precisavam de corte — ou com uma concha grande. O mar chamava por mim, com aquela voz melodiosa de sereia, todo de prata, no preciso momento em que estava prestes a encontrar o ouro, e só pode ser por isso que nunca o encontrei mesmo a sério. 

Estava eu outro dia a recordar uma época longínqua da minha vida, em que levava um mega-saco para a praia, com milhares de brinquedos de areia, vários baldes, pás, ancinhos, forminhas, noras e até um camião. Chegávamos ao areal, espalhávamos aquilo à beira-mar e, rapidamente, se fazia ali o cantinho das construções, uma coisa muito Movimento da Escola Moderna, mas na praia. Aproximavam-se dois, três, dez miúdos, que traziam os seus brinquedos e participavam todos numa construção — mais os rapazes — ou a fazer forminhas — mais as meninas. Ao fim da tarde, recolhidos os brinquedos para o mega-saco, sobravam sempre ancinhos, que não eram de ninguém. Esquecidos, rejeitados, lá me iam parar ao mega-saco que, ao cabo de alguns anos disto, tinha mais ancinhos do que qualquer outra peça.

Estava eu hoje estendida ao sol, e, à minha frente, um casal com uma menina de cinco anos. Chamou-me a atenção, porque não me escapa aos olhos criança nenhuma, mas aquela matava-me saudades de uma outra: ainda rechonchuda de bebé, já torneada de rapariguinha, o cabelinho escuro, encaracolado, preso num rabo de cavalo. O pai e a mãe, completamente indiferentes — eu não disse ocupados nem distraídos, disse indiferentes —, sentados à sombra, sem livro, sem jornal, sem mirar o horizonte, sem uma palavra trocada. E ela, sentada na areia, o balde à frente das pernas, com areia e água lá dentro, o ancinho numa mão, a outra a mergulhar no balde — e a beber água do mar, a comer areia. Silenciosa, entretida. Completamente sozinha.

Estava eu a ponderar a possibilidade de ir avisar os pais de que, se calhar, areia e água do mar não são a melhor coisa para se comer, quando o pai, acordado sabe o diabo de que pensamentos tortuosos, lhe começou a ralhar. Não o ouvi gritar, não o vi tocar na criança, sequer segurar-lhe um pulso. Ralhou, ralhando, em tom de raiva, os olhos a chispar, os lábios desaparecidos, a têmpora a latejar, Estou farto de ti! E ela — cinco anos — encolhida como um bichinho-da-conta, nem um ai, nem uma lágrima, à espera, perfeitamente consciente e habituada ao que viria a seguir. E esse a seguir, estou certa, só não veio porque, entretanto, várias pessoas pararam de viver para (também estou tão certa), em caso de necessidade, poderem evitar a violência maior, física, que ele dava a adivinhar. Mas o homem-pai estava desvairado de tanta fúria, e foi quando pegou no ancinho, cor-de-rosa, e o partiu em dois. Enquanto se deslocava para o ir pôr ao caixote do lixo — extremamente civilizado, excessivamente cruel —, a filha, desesperada por consolo para as lágrimas que, finalmente, pôde deixar cair, teve que abraçar a mãe pelo pescoço, que, seca, nem com um braço lhe rodeou o corpinho, quanto mais com os dois.

Estou hoje a pensar na minha vida, e a achar que devo ser uma pessoa muito anormal.

De facto, o ancinho não serve para nada.



Diálogos ao sol # 4

Ela faz palavras cruzadas.

- Sorvidos, absorvidos, chupados.

[Serve-me de desculpa que as palavras cruzadas não costumam dar mais do que um sinónimo. E que ela não me disse o número de letras.]

- Mamados.

Era aspirados.

Era o que faltava

Pensam elas que, porque já fizeram dezoito anos um dia, uma pessoa tem que ficar calada. 
Pensam elas que já mandam no seu nariz, feito por mim (eu sei que a meias com o pai delas, chiu).
Pensam elas que, uma vez que cresceram, eu deixei de poder dar opinião acerca de, basicamente, tudo.
Pensam elas que eu as vejo metidas numa actividade física, com um nome ridículo do estilo crossfit (até podia chamar-se Anabela, que ia ser sempre mau), à torreira de 30 graus, debaixo de um sol cancerígeno, a elevar pesos, a fazer flexões, a subir escadas e a dar saltos, e devo fazer ámen e achar tudo excelente para a saúde.
Pensam elas que eu também cresci e deixei de me passar dos cornos cada vez que as vejo correr perigo. Nem que seja porque uma melga as mordeu. (Caramba, a única vez que me atirei a um cão furioso, foi porque ele se ia atirar a uma delas.)
Pensam elas que eu ganhei um filtro, que não me permite dizer alto e bom som, "Mas que estupidez vem a ser esta?".
Pensam elas que algum dia uma pessoa deixa de ser mãe.
Pensam elas que nunca vão ser mães.

Porra, isto não é uma poesia. É a realidade, nua e crua, suada e irritada, a dos murros em pontas de facas, que doem tanto, e parecem nunca entortar a FDP da faca. 

26/06/2015

O fio dental

Não consigo ficar calada por mais tempo com este assunto. Que confusão terminológica esta, que para aqui vai, com o fio dental. 

Ao contrário dos restantes humanos, que, idealmente, obedeceriam à regra da visita bianual ao dentista, eu só lá vou uma vez por ano. Esta espécie de imposição partiu dele — embora o tenha feito com o coração a sangrar —, por achar desnecessário que lá vá mais, o que, por enquanto, ainda não acontece pela falta de dentes, nem sequer do siso, que nunca mais tive na vida, pois que mos fizeram saltar entre os 19 e os 21, à força de alavancas e força bruta. No entanto, continuo a visitá-lo amiúde, por vicissitudes de agregado. Ou seja, passo lá a vida.

Da última vez que lá estive, ele fez aquilo que mais me baralha o neurónio sobrevivo — e não, não dançou o french can can, nem me confessou, finalmente, o quão espantosa me considera —, que foi corrigir-me uma expressão, vá, verbal (já sei que toda a gente diz oral, mas eu sou armada em diferente). Pois que me tentou impingir que não se diz fio dental, mas sim fio dentário, porque, segundo ele, fio dental é outra coisa — e disse isto num meio sorriso, a quebrar o semblante profissionalíssimo que normalmente usa, enquanto mete as luvas e seu conteúdo boca adentro de qualquer dos elementos do meu agregado. 

Eu percebo a agonia dos dentistas, quanto à confusão que se pode gerar entre a pseudo-cueca que é um fiozinho e se mete cu acima, e o fio encerado que nos recomendam passar nos intervalos dos dentes. De facto, um não substitui o outro. Ninguém, no seu juízo perfeito, ainda que já não tenha sisos, como eu, faz de um bocado de fio dental umas cuecas. E, inversamente, penso que também não dá muito jeito. 

Porém, o que o meu dentista desconhece, é que aquele tipo de indumentária rabal ganhou o nome de fio dental, exactamente drivados à semelhança com o fio dos dentes. Ainda assim, julgo não ter havido qualquer espécie de associação de ideias com aquelas pessoas que, por abusarem nas quantidades de comida que ingerem, têm fama de ter dentes até ao cu

(É uma expressão popular, não fui eu que inventei. Tamãe...)

Carcavelos

Acabei o trabalho que me ligava à máquina há semanas. Na verdade, este veio colar-se a outro, pelo que perdi a conta dos fins-de-semana sem pausa. 
Pedro, aquele metereológico da batata, dimanou uns raios solares mais intensos a partir de hoje, contrariamente ao que ditava o meu site de referência temporal, o que me leva a crer que o santo adivinhava que eu me ia libertar das amarras laborais algumas horas antes do previsto, ofertando-me, assim, a possibilidade de zarpar a todo o vapor (isto é uma metáfora, que eu sou uma senhora, não faço essas coisas) rumo às marés, espero que não vivas, mas também não mortas, que, para isso, já basto eu — de cansaço. 
Hoje mudo de praia. Por contingências que até se poderiam chamar profissionais, dada a densidade populacional que consigo acumular dentro da mesma viatura, ontem passei por Carcavelos. No regresso, em vez de vir pela A5, percorri a Marginal, tive o cuidado de quase nem olhar para o lado direito, para não cair em tentação e livrar-me do mal, mas, pelo que a visão periférica  — que é o rabo do olho, o centro de todos os pecados capitais e secundários — me deu a perceber, aquilo ficou a apetecer-me. De modos que hoje é lá que aterro, ou areio, os pés, dos pés à cabeça.

Carcavelos é a praia-fenómeno da linha do Estoril. Ao dia de semana, apesar de Junho já ser um mês de férias para muitas pessoas humanas, é tranquila. Tem quase sempre um mar chão, muito bom para as escolas de surf darem aulas e sugarem uma fortuna aos miúdos que, entretanto, não aprendem a surfar ali, mas treinam a remada que se fartam. Ao fim-de-semana, goza da afluência de gentes, que traz o comboio que ali passa, vindo do Cais do Sodré, passando por Algés, onde se embarcam, ou encomboiam os cowboys todos da bela Buraca.

O ano passado, durante uma vaga tsunâmica de calor que houve em Julho, fui-me espraiar para Carcavelos num belo sábado de solinho intenso como o meu olhar. Foi uma experiência, e é disso que o saber é feito. 
Vinha eu expulsa do Guincho, que fica a 17 quilómetros de Carcavelos, onde a temperatura do ar, ou melhor, da ventania, era de 25º. Fui encontrar, ali, um ar abafado de 37º, mas, mal por mal, lá espetei o guarda-sol e ala para a água.
Muito giro, sentir-me uma formiga no meio de um jogo de berlindes. Ou um ácaro, num jogo de bubbles. Até chegar ao mar, fintei, pelo menos, oito ou nove jogos de futebol, e ainda hoje desconheço como é que lá cheguei sem uma bola agarrada aos dentes. 
Carcavelos, ao fim-de-semana é a praia em que se eclipsa com o sol a noção de perímetro mínimo pessoal. Toda a gente se deita, não é ao lado, não é perto, não é encostado — é em cima, de toda a gente. Eu deitei-me ao sol, nem sequer tinha as pernas esticadas, e foi nos meus peitos (hahaha, que linda imagem) dos pés, que uma jovem buraqueira, muito tatuada e vestida com um fiozinho dental (que, como tal, andava para lá para dentro, desaparecido, mas avaliei pelo triângulo que lhe saía rabo acima), se deitou, fazendo dos meus pés almofadinha de praia. Ainda mexi os dedinhos, não em sinal de desaprovação — não fosse ela e o grupo que a acompanhava aborrecerem-se comigo, e eu sou frágil —, mas para verificar se ela estaria a dar-se conta do grau de intimidade que havíamos atingido em público, sem sequer termos sido apresentadas. Qual nada, continuou de headphones pela cabeça adentro, penso que até considerou aquilo uma caribbean head massage. 
Portanto, hoje, é capaz de ser melhor nem me descalçar.

25/06/2015

O Olá! e eu — # 2


Placa que se encontra à nossa disposição, e enterrada no solo, à saída da segunda circular, de quem vem de trás e vai por ali afora, em direcção ao sol. 

A Infraestruturas de Portugal é-nos íntima, pelo menos o suficiente para nos poder fazer este aceno, dar esta palmadinha nas costas, palmadona na nalga. Eu cá, sinto-a (a intimidade, não as palmadas). Olá, pá. Eu gosto. A partir desta placa para a frente, vou sempre contente, a cantarolar olá, olá. Uma alegria pegada dentro do meu boi.


A sério que gosto. 
Pronto, agora tudo a achar-me irónica.
Palavra que prefiro esta placa às duas que estão ao lado — uma, de vinhos (numa via equiparada a autoestrada); outra, do senhor Leroy [lê-se lerruá, mesmo, that's french, kiss], que me manda trocar de banheira. Vá que não é de bidé, na senda da intimidade. 

O meu problema, se é que lhe posso chamar assim, é, como sempre, semântico.

olá de novo.
Falta a vírgula. olá, de novo. olá [vírgula, penico!] de novo.
Falta a outra placa, lá mais atrás, a dizer olá (que é para haver o de novo). 
E falta mais qualquer coisa, mas agora não me lembra do que é.


Eremitei-me

Não tenho nada para vos contar.
A minha vida, neste momento, resume-se a um teclado, com (deixa cá contá-las) 104 peças, não contando com aquelas pequenininhas lá de cima, de acesso directo ao mail, à música, à calculadora, e porrinhas, senão, seriam 114, e estou a contar a barra de espaços e o enter como teclas, ao que eu cheguei, mas também não estou a contar as teclas duplas como duas, que isto de se pôr os tiles, os circunflexos e os pontos nos ii não é para qualquer uma, quanto mais as p. das vírgulas. 
O trabalho vai em 314 páginas e eu não lhe vejo o fim, que está quase, mas esse quase já existe desde há muitos dias a esta parte gaga.
Eremitei-me para aqui, faço lembrar um eremita a sério, que se eremitou ao final do eixo norte-sul, de quem vai para o Continente de Telheiras, ali por uns anos. Tinha uma pedra, altar de culto, uns ramos de umas ervas que não devia fumar, e vestia-se e penteava-se como um eremita mesmo real, assim de manto branco e barbas compridas, sei lá se não era o Noé, naufragada a arca e dispersados os bichos todos, aos pares heterossexuais, como convém. Sei só que, um dia, ele se deseremitou, deve-se ter chateado de estar ali todo o dia a vê-los passar, sem ganhar protagonismo nem moedas de jeito, e toca a andar de volta para o escritório, que lá é que se está fresco. Ou alguém se chateou de o ver ali e, como se costuma dizer, institucionalizou-o. Já não se pode ter um aspecto diferente do resto da manada, que não nos tomem logo por loucos e não seja por nós que começam o processo de institucionalização, vulgo, normalização, como aquelas laranjas e maçãs da CEE, que eram todas iguaizinhas umas às outras, deviam vir todas da mesma forma.
Na verdade, a única coisa que faço, e que me distingue de um eremita a sério, é, apesar de trabalhar em casa, lavar-me, pintar-me, vestir-me, meter os dedos ao cabelo (não me penteio, conforme sabeis) e calçar-me, tal e qualmente faria se trabalhasse fora de casa, tipo na rua. Não há cá albarda confortável, nem pés em cima da secretária (a de quatro pernas, que a de duas não tenho), nem migalhas da minha existência por todo o lado, nem dentes por lavar. Por respeito a mim, por respeito ao meu trabalho, por respeito a quem mo paga, sou uma eremita, mas uma eremita chique.
Dia após dia, sento-me às teclas e digo-me,
Bom dia, senhora doutora.
Com todos os efes e erres que a frase contém — e que são muitos.

24/06/2015

O problema não sou eu, é ela - a dura realidade # 6

Vai a pessoa na sua vidinha, que não chateia ninguém.




Já sei que a fotografia é péssima, e a definição é zero.
No entanto, este carro foi vendido por um stand que dá pelo nome Auto Rabal.
E agora eu pergunto, e ninguém responde: o que é que passa pela cabeça das pessoas quando criam, e depois vão registar, as sociedades?
E ainda concluo: no Registo Nacional de Pessoas Colectivas não há uma única cabeça igual à minha.
(Provavelmente, nem em lado nenhum.)

Post escatológico, não: flatulento

Eu, que não corro, soube há escassos que, quem o faz, e quando o faz, o faz com pompa e circunstância, ou seja, que se flata com maior ou menor frequência, com mais ou menos intensidade e estrépito. 

Quem corre, bufa-se. Isto podia ser um ditado popular. Como aquele de quem tem cu, sabem?

Não posso dizer que tenha ficado chocada, pois a minha capacidade de aceitação do próximo (desde que não esteja assim tão próximo quando se abre) e a extensão da minha abnegação quanto ao meu bem-estar, não conhecem limites, e nem o céu é um deles — o mesmo que eu espero não me esteja reservado, pois não tenho espírito, ainda menos o vou ter depois da finação, para as harpas e os violinos e os anjinhos, a encherem-me a cabeça de trovas antigas, saudades loucas, andam cantigas a bailar de boca em boca — agora já não sei o que é que ia dizer a seguir, mas tenho que pôr uma porra qualquer depois do traço que não é underscore.

Pá, pus-me a pensar no povo que corre em grupinhos de quatro ou cinco. E, mentalmente, lamentei a sorte dos desgraçados que vão atrás. Pus também a hipótese de o vento lhes estar de feição e, aí, senti comiseração pelos atletas da frente. Ser um dianteiro pode não ser uma boa ideia, sobretudo se o vento está a nosso desfavor. E, reparem, isto que acabo de escrever, também podia ser um mantra, ou assim.

Depois lembrei-me dos maratonistas, ali cinquenta quilómetros a bombar, ora lameirinhos, ora estampidos, ora molhengas, mas sempre ora, trau-trau-trau, cinquenta mil metros, vá que seja um flato por cada mil, vai dar uma bela média de cinquenta pumbas por corrida, ai que não é de subestimar. Já imaginaram a concentração de gás metano* que fica na atmosfera, designadamente ao longo do percurso de uma maratona, só à custa da produção natural nalgueira? Eu só pasmo com estas descobertas caseiras que vou fazendo, puramente dimanadas de algum raciocínio, mas também de um nico de imaginação fértil, modéstia — sei lá o que isso é — à parte. 

Parei de fazer imagens mentais aliadas à relação run-Forrest-run-and-fart-Forrest-fart, quando me lembrei daquelas maratonas que agora se fazem, por tudo e por nada, corre contra o cancro, corre contra os animais, corre contra a seca na Austrália, que, depois aparecem nas revistas del corazon, sabeis? Elas todas muito tonificadas-tony e eles todos muito depilados-depil, Jesus, só de imaginar que acabaram de esvaziar a lata enquanto davam corda aos Nike-Air-Max-Ultra-Breath-Rosh-Run, dá-me cá uma dor de barriga, mas vá, acreditem, é mesmo só de rir, que eu sou assim, parva, rio-me dos nervos. Mas, por outro lado, não sei se já disse (vezes suficientes), sou uma senhora, e as senhoras não fazem essas coisas. Deve ser por isso que não corro.

No run, no fun, no fart. 

Pum.

~

* Ó a wikiseca, quase a dar-me razão: 
Quanto às fontes alternativas, um método para a obtenção de metano é via biogás, gerado pela fermentação de matéria orgânica, incluindo esterco, esgoto, lixo urbano e outros estoques [estoques. Estes gajos...] de material biodegradável, em condições anaeróbicas. Significantes quantidades de metano também são produzidas por gado – não pela flatulência, como é erroneamente dito, mas 50% é produzido no processo de ruminação. A pecuária em geral (principalmente bois, galinhas e porcos) produz 37% de toda a emissão antropogênica de metano. 


23/06/2015

O rabo do gato

Diz a sabedoria povina que o rabo do gato é o mais difícil de esfolar, e eu acredito, mas não sei. Nunca esfolei um gato, e espero que não haja para aí juízo final que me ponha nessas andanças. Para já, porque sou alérgica ao metal e aquilo da esfola deve fazer-se com armas brancas e contundentes em inox, e depois, mas não por esta ordem, porque eu amo kitties, mas as coisas são como são, e se fosse para matar a fome aos meus, Jesus, se não esfolaria um gato?, esfolaria, pois (até um tigre branco, quanto mais um gato), antes ele do que eles.

Bom.

Não é. O rabo do gato é mas é o corno maior e o mais duro de roer. Isso sei, porque estou a roê-lo com todos os meus 28 dentes (os sisos do juízo foram-se os quatro que foi uma festa).

Trabalho em fim de prazo, é tão evidente que o vou cumprir, que só me apetece incumpri-lo. Estou que não me aguento, a arranjar motivos para fazer mil intervalos (este é um deles), e a beber água.

Uma delas convenceu-me que devo beber dois litros de água por dia. São onze da noite e bebi cerca de 500 mililitros. Meio litro. Estou em pré-afogamento, já pensei em chamar o Instituto de Socorros e tudo.
Se calhar, hoje não bebo mais e amanhã bebo quatro litros, para compensar. Três e meio.

Por outro lado, obrigada a Pedro, aquele santo metereológico: vai manter-se este tempo horrivelmente primaveril até ao meu D-Day, e, lá para sábado, já posso voltar a meter ondas debaixo de ondas, que é como quem diz, a cabeça no mar, que dessa água não beberei, nem em pré-afogamento entrarei.

(Tenho que parar de subestimar esta veia poética, que é praticamente uma variz!)


O Olá! e eu

Canso-me de repetir as mesmas balelas. Mas repito, porque isto de se ser velho é melhor ainda do que se ser burro: a pessoa (a malta, como dizem os outros) encrava ali num assunto, e depois é um pim-pim-pim de dar gosto ao dedo, teclas afora. Assim estou eu. Acho, sem certezas, que ainda não cheguei a burra, embora ache também que daria uma burrinha mesmo ólraite, hi-hón.

Pá, não me digam olá, assim à bucha, sem me conhecerem de lado nenhum, que me põem a cabeça em girândolas e o pescoço em twister, à procura da pessoa — que não eu — que quiseram cumprimentar com o tal olá. Ou ter-me-ão a olhar-vos fixamente, à procura, na minha memória de Dory, de onde genitais vos conheço. Mas é que vasculho tudo até à escola primária, e não já até ao jardim de infância, porque, desse, lembro-me quase só de ter entalado a mão na porta da sala de actividades (não havia cá alvarás, nem mariqueiras dessas, e a p. da maçaneta estava colada à frincha, o que me valeu uma unha fora, que ainda hoje me dói-dói) e também de um gafanhoto ter pousado na saia de uma miúda, e de eu ter ficado a olhar para aquilo, fascinada (o bicho, a saia era azul escura, de pregas), até ela ter tido um ataque de guinchos e me ter estragado a paisagem, a parva, que ainda hoje não lhe perdoei (espero que se tenha ido tratar dos nervos). 

Imaginem a seguinte circunstância: vou a entrar no shopping mais eu, que é o Atrium Saldanha: iluminado, pequeno e grande, espaçoso, clean, chique e giro. Eu sou assim, iluminada e tudo. À entrada, junto a um daqueles mini-stands que são uma espécie de praga que o Barclays inventou, está uma senhora, que me estende a mão, enquanto diz

Olá, minha senhora.

Olá, minha senhora, com o pormenor da manita estendida, pode ter sido a coisa mais tola que uma desconhecida me disse em toda a vida. Só estou aqui a registar, porque imagino que nunca mais ouvirei nada tão desconexo, impróprio, descabido, descontextualizado e semanticamente absurdo.

Foi tão blogger da minha parte # 2

Ando uma feirante de mão cheia, mas não larga.
Durante aquela minha profícua estadia em Coimbra, calhou-me que nem ginjas à pura sorte uma feira de artesanato. 
Eu frequento feiras de artesanato, porque tenho a mania — não há nada mais hipster, nem urbano, nem intelectual bem calibrado que se possa fazer, do que ir a uma feira cheia de tradições regionais, e assim.
Esta era uma feira muito completa, em termos de tudo: artes manuais (ó pá, lá estão vocês), gastronomia, doçaria, e também tinha uma feira do livro, com cerca de 15 stands.
Percorri-a de ponta a ponta, conversei com alguns vendedores, aproveitei a dica da Agridoce para travar um diálogo metafórico dos meus, Quer um corno?, Não, quanto muito, quero dois, que entre vaca e unicórnio, fico-me pela primeira (sou tão Vasco Santana), 


estarreci um alfarrabista com os meus conhecimentos sobre Somerset Maugham, que são nenhuns, mas boquiabri-o na mesma, enfim, armei-me aos cucos, ao pingarelho e em boa, de maneira a poder vir para o blog contar tudo como se fosse a maior da minha rua, só não armei a barraca porque disso já lá havia que chegasse. 
Felizmente ou não, a pobreza em sentido estrito não acompanha, de mãos dadas, a pobreza espiritual. Só isso explica que eu me cultive, qual flor de jardim, a custo quase zero, financeiramente falando. A feira, percorri-a de norte a sul e mais os outros cardeais e bispos, com apenas dois euros no bolso (mais concretamente, na Tous, que eu sou tesa que nem um carapau, mas tenho a PDM). Um pouco por isso, mas também por aquilo, comprei este livro, talvez para não sair da feira de mãos a abanar, que é o maior indicador de pobreza a que se pode chegar, tipo sinais exteriores de riqueza, mas ao contrário. 



Quem já anda há uns aninhos largos na blogobola, lembra-se, com toda a certeza, da Sissi. 
A Sissi tinha o blog Cenas de Gaja, que era, há dez anos, dos blogs mais lidos, mais comentados e mais visitados que existiam, na altura. Era também detentora do maior par de tomates que uma mulher, que escreve para um público anónimo, sobre temas sexuais, pode ter. Não havia cá moderação de comentários, nem mimimis, e ela respondia a toda a gente com o mesmo à vontade, quer se tratasse de um comentador identificado, quer fosse um anónimo ordinário, e disso havia lá às paletes e aos pontapés, e pena foi que não os levassem com maior frequência. Quando a identidade da autora foi conhecida, o registo não mudou, o que confirmou aquilo que ficou dito acima acerca de tomates. Um dia chateou-se e despediu-se dos leitores.

Um euro e meio, leram bem. 
É claro que não se trata de um livro-livro, não é uma obra literária tout court. Mas, de uma maneira ou de outra, é o resultado do trabalho de alguém, (não) reconhecido desta forma.

Por acaso, isto deu-me que fazer ao neurónio sobrevivo: como é linda, a blogosfera. 
Às vezes, lembra uma máquina trituradora, que engole as pessoas, suga-lhes o talento e a alma, e depois cospe um livro, ao preço de uma caixa de pastilhas elásticas. Mais valia ser dado, em oferta de uma caixa de pastilhas.

22/06/2015

Nós cegos

Em Lisboa 28 graus, em Cascais 23, quase tive frio, quando lá cheguei. O céu estava quase cinzento, e eu quase triste por isso também. Sentadas, frente a frente, as mãos dadas, os olhos entrelaçados, só tinham passado quinze minutos e eu já fugia a correr, se não estivesse acorrentada ali, por laços de ternura que são tão cegos quanto nós, nós cegos, e quanto nós conseguimos ser, cegos, quando nos queremos libertar e não há como nem porquê nem para aonde. 
Tenho saudades, contaram-me outro dia que diz, muitas vezes. Diz que tem saudades.
E eu encho-me de enfado.
Toda a vida a ouvi dizer que tinha saudades. 
E isso pega-se, como uma praga. Também eu, estou sempre cheia de saudades e farto-me desta mania quase doença, que me põe quase triste, toda nostálgica. 
Tenho saudades dele, disse a minha mãe no dia em que o meu pai morreu.
Tenho saudades do meu pai, digo eu há anos a mais, farta da praga.
Faz hoje anos que a minha mãe me ensinou a ter saudades para sempre.


Ide ao shopping center

A pessoa pode ir ao shopping para passear, no meio da heterogeneidade, para ver montras e babar, no meio da penúria, para ir às livrarias, feita hipster, para tomar a bica com a vizinha, no meio da gandulagem, para ir ao cinema, no meio do marasmo, para ir ao supermercado, no meio da confecção do almoço, para ir à polícia, no meio de um assalto, para ir ao ginásio, no meio do dia, para comprar um mundo de utilidades mais ou menos inúteis, no meio do seu TOC, e etecetera. Mas também pode ir elevar-se culturalmente.
No Centro Colombo, está uma exposição de Salvador Dali.
Muito boa, vale muito a pena ir de propósito.

Vede, vá. 
E vade.

Agripina, mas ao contrário

Olá, amiguinhos!
Hoje venho falar-vos de uma experiência degustativa, desgostativa, desgostante e desgastante, a que me sujeitei voluntariamente, mas absolutamente sem querer: falo-vos do novo Compal, sabor a detergente!


Tudo começou quando me acerquei do expositor de um self service e me self servi de uma garrafinha destas, profundamente convencida que estava a levar para beber um nectar qualquer de frutos vermelhos. E não, a vista não me falha. O que me falha, desde sempre, é alguma vista larga. Eu não adivinhava que, com aquela mesma cor e bonecagem no rótulo, pudessem existir dois Compal (não tem plural, não existe Compales nem Compais, mando eu) com tantas diferenças como semelhanças. Análogos, portanto. 
Foi horrível. 
Uma vez que me foi disponibilizado um copo de papelão, vá que me convenci que o merdas do sabor era do copo. Vá que ponderei a possibilidade de o copo — que era de papelão, eu repito. De papelão — ter sido lavado com detergente, e estar inquinado. Vá que me imaginei, por escassos décimos de segundo, uma blogger famosa, vítima de envenenamento, às mãos de suas anónimas da rage-tu-m'emmerdes. Mas depois lembrei-me que não tenho anónimas com tomates para tanto. Vá que imaginei que era uma cena para um programa de Apanhados, e até olhei, subrepticiamente — e também de soslaio —, para os quatro cantos da casa, à procura das câmaras e de um Jorge Gabriel José Figueiras (gracias, oh Jedi) qualquer, que me aparecesse a rebentar a bolha, quiçá a cantar o tirolês dele e tudo. Vá que pensei ter dado uma boa chupadela no Super Pop limão, ou até no meu Johnson's baby (que, no meu caso, deve ler-se Johnson's... baby), antes de provar o equilíbrio uva concord da Compal, que tem tantas coisas erradas no mesmo rótulo, que é como quem diz, no mesmo pacote. Vá que pensei ter feito mais um regresso ao futuro, invertido, havia ido parar a Roma e meu nome era Cláudio.
Olhem, não sei. Fui devolvê-lo ao balcão, criei uma pequena sit, senti-me quase uma protagonista das primeiras páginas do Correio da Manhã (MULHER COM IDADE QUASE FALECE AO BEBERICAR NÉCTAR INQUINADO), expliquei os meus motivos quase até à exaustão (da funcionária, que eu nunca me exauro, em se tratando de defender a minha dama, que sou eu), e deram-me outro. Molhei-lhe os lábios e oh, nauseum, tão péssimo quanto o primeiro. Quando me ofertaram o terceiro Compal, fui-me ao de maçã, que sempre me pareceu mais cauteloso, e com menos probabilidades de vir envenenado. 

Ou ando mal informada.



21/06/2015

Não consigo parar de falar de cabelos

Vocês, não sei, mas eu sofro, quando lavo o cabelo, no Verão. Aquilo que deveria ser um momento refrescante, transforma-se numa tortura, que ai de mim que aos sequestradores lhes passe pela cabeça (deles, não minha), se algum dia eu for raptada. É molharem-me o cabelo sucessivamente, e têm-me a telefonar à minha família, de mote próprio, a gastar do meu tarifário, para os ameaçar que faço greve de fogão caso não paguem o meu resgate. 
Molho a trunfa, pois não conheço outro método para a lavar — a não ser o do champô seco, ao qual aderi aos 11 anos quando, e por esta ordem, 1. estava com gripe, 2. no dia seguinte já ia às aulas, 3. a minha mãe me proibia de lavar o cabelo, e 4. eu ainda lhe obedecia (depois saiu uma variável desta equação e passei a lavá-lo, mesmo com febre) —, dizia eu, que não há mais métodos para lavar a piruk, que não seja molhando-a, e agora já me perdi no texto, cá reler isto, a ver se ainda continuo ou mando esta coisa para o coisinho que tem um caixotinho do lixo, que até se regala. 
Ah. Lavo o cabelo e ele leva, exactamente, o dobro do tempo a secar do que leva no Inverno. Mal as peles da minha cabeça sentem a água molhada (quais redundância, quais carapuça, eu sei o que estou a dizer), desatam numa suadeira de dar gosto a qualquer halterofilista, ainda na fase em que assenta aquela coisa no alinhamento ombros-garganta. Depois forma-se ali um ciclo vicioso, cabeça-molhada-água-cabeça-molhada-suor, que uma coisa leva à outra e, quanto mais suo, mais a cabeça fica molhada, quanto mais molhada fica a cabeça, mais suo, que eu juro que não sei como é que não se me apodrece o cabelo, ou, pelo menos, não cheiro a mofo da cabeça (ou acho eu que não). 
O esforço físico que este processo implica é de tal modo desgastante, que tenho a certeza que emagreço da cabeça, nos dias em que a lavo, no Verão. E isso, naturalmente, encolhe-me as ideias, mirra-me os pensamentos, faz com que só diga e escreva tontices.
Eu hoje lavei o cabelo.


Foi tão blogger da minha parte (não fora o pormenor de a piscina, obviamente, não me pertencer) — acrescentei um facto histórico, de que me lembrei entretanto


ter passado o dia de ontem submersa nesta cálida água, drivados da canícula que se fazia sentir e à qual sou sensível como uma sei lá, só tendo pausado para tirar este retrato, em vossa intenção e, basicamente, para proceder aos morfes. Justificado também pelo calor de ananases que nos possuiu a todos com maior ou menor violência, fiz tudo o que não se deve fazer, mas não morri, nem me pus ébria, ao contrário do que mandam os vários figurinos cardapiais: misturei caipirinha com sangria, meti-me na água, comi como um abade, uma lontra, um cão esfomeado, uma portadora de ténia, meti-me na água, bebi cerveja depois da caipirinha e da sangria, meti-me na água, comi metade de uma melancia sozinha, bebi cerveja a seguir e meti-me na água, a sério, ainda aí estão?, e não morri, não sei se já disse, donde se conclui que, de duas uma: ou perdi extremamente a sobriedade e não me apercebi, e também morri e não me apercebi (mas palavra que me sinto bem e até acho que não tenho mau aspecto hoje, para além de que não preciso de KGB), ou então sou de uma rara carnadura que tudo aguenta, e o meu organismo é uma fábrica de reciclagem, que tudo digere em segundos. É claro que soltei algumas inconveniências, mas isso acontece-me com uma frequência não relacionada directamente com a ingestão de coisa nenhuma, pelo que não posso afiançar. Era o raio do cão ter-me largado o rabo e eu tinha ficado calada. Assim, não houve condições. Parecia a Jodie Foster quando era pequenina, naquele anúncio do Coppertone, genitais.


Só me vim embora quando as melgas me começaram a comer, não fossem as p. ficar gordas e bêbadas à minha custa. Isto, já era hoje, que passava da hora da Cinderela, ó ié.

Deslarguei esta frase # 32

Posso ser a nova [novidade, não juventude — que isto fique claro, de uma vez por todas] Lili Caneças, e não sei...

(Ou foi o little pink moment of the day...)

Diz-me ela assim para mim:

- Estava um mosquito a afogar-se na água do lava-louças e eu salvei-o de morrer afogado.

Orgulhosa, quase comovida, dir-se-ia mesmo feliz, por verificar que o respeito pelo valor vida está a ser tão bem ensinado, respondo:

- Eu também faço isso. Não suporto vê-los a afogarem-se, debatendo-se pela vida.

- Depois fui pô-lo à janela, para ele poder voar, mas acho que tinha uma asa partida, e não voou.

Absolutamente esmagada de júbilo educacional, profiro, gloriosa:

- Olha, mas mais vale viver com uma asa partida do que morto.

[I rock]


19/06/2015

As coisas que eu vou desencantar ao baú... # 3

A minha gata mais velha, Mia, que tem agora seis anos, veio cá para casa com 3 semanas. 
Este filme, embora seja de má qualidade, mas não série B, atesta em como eu a ensinei a limpar a sua própria caixa de areia, e como isso é possível. Basta muito amor e alguma tenacidade, como para quase tudo na vida. Até para fazer molho de escabeche.



Esta madrugada tive um pesadelo e sonhei que estava no cabeleireiro

Depois acordei e verifiquei que não era pesadelo, ah, afinal estou mesmo.
Eu não gosto de ir ao cabeleireiro.
Para não ter que me encharcar em calmantes — porque nem tenho, nem conheço marcas, dá muito trabalho ir comprá-los e devem ser caros —, marquei cabeleireiro para a primeira hora da madrugada que lá se fornece, ou seja, às 8.
Não sei como lá cheguei, mas isso agora é irrelevante. O que é certo é que acordei lá, já Santa Ana me cortava pontas mortas e acho que mais nada, por não ter apanhado a jeito e a eito do tesourão mais nada morto em mim. 
Não sei se a ideia era ficar deslumbrante, mas sei que consegui ficar com os caracóis no auge — o que confere, dada a época deles —, e um cheiro a produtos químicos que sei que fiquei, pelo menos, inebriante.
Pareço a Ovelha Choné.
Estou tão querida.
Fofinha.
Méééé.

18/06/2015

Eu sou aquela pessoa que nunca, em circunstância alguma, deves levar ao supermercado # 12

Faço associações de ideias meio estranhas.
E charadas.
E anagramas.
E assim.

Num Continente, não muito longe de mim.

E penso: Na kama com um karamel.

Maria João

Não sei se ela se chama Maria João, mas acho que sim. Ou Maria José, tanto faz. Tem que ter nome de homem, porque parece um homem. Sentada no cadeirão, fica enorme, toda esparramada, ombros largos, mãos grossas, braços fortes. Não gordos, fortes. A bengala sempre no colo, atravessada sobre as duas pernas, sempre de calças. A cabeça é a de um homem, recostada para trás, cabelo curto, branco-opaco, ondulado, os malares pronunciados, o queixo quadrado, o nariz recto, os olhos daquela cor vítrea do âmbar, a fitarem-me fixamente.

- Quer chocolate?  — pergunto-lhe.

Levei dois pacotes de Maltesers, um destinado à minha mãe, outro aos pássaros que a circundam e aos quais não quero negar uma migalha. 

- Não. — seca. O corpo, másculo, mantém-se imóvel, só alternando a posição da bengala entre atravessada perpendicularmente ao tronco e paralela a ele. Parece empunhar uma espada, no momento de trespassar o inimigo.

Atinjo-a com um sorriso e estendo-lhe o saquinho de chocolates.

- Mas tome. Eu quero dar-lhos. Vão derreter na minha mala.

Ela recebe, mete na boca e continua a fitar-me, fixamente. Estendo-lhe outra vez o pacotinho.

- Tome lá outro.
- Não quero.
- Mas quero eu.

E ela come outro. Pisco-lhe o olho. Não há réstias de feminilidade na figura, o que me suscita o instinto, por me parecer lidar com um gajo. 
Estranhamente, gargalha, sentida, e acaba o ataque num pranto de criança, semelhante a uma birra, ha-ha-ha-ha-ho-ho-ho-hã-hã-hãããã.
Dou-lhe mais um chocolate, e ela cala-se. 

Aproxima-se a hora do almoço, levanta-se, empunha a bengala, e vai a passos de bebé, minúsculos, minúscula, até à mesa. Está sozinha numa mesa pequena, provavelmente por ter um comportamento que lhe ceifa a possibilidade de ter companhia. Agarra no babete, os fios atados num nó, tenta desatá-lo, puxando com toda a força. Depois, tenta enfiá-lo pela cabeça, sem desatar o nó, mas não cabe. 
Começa outra birra, em tudo semelhante a um ataque de riso. 
Parece um homem.
Parece um bebé — menino — birrento. 
(Os bebés gritam, em sendo meninos, e guincham, em sendo meninas.)
Pego-lhe no babete, desfaço o nó, ponho-lho ao pescoço só com um lacinho, faço-lhe uma festa no braço, Tudo fixe, e pisco-lhe o olho outra vez. 

Ela olha para mim, o âmbar todo a brilhar, em forma de luz dourada, Obrigado, hã?

Dois homens no asfalto

À saída da CRIL, nos últimos 300 metros antes da entrada na segunda circular, o trânsito estava parado. Fi-los a pára-arranca, até chegar à curva de entroncamento, onde me apercebi da presença de um carro de bombeiros, uma ambulância do INEM e um homem deitado no asfalto. Saí pela direita, e apanhei a via de acesso a Sete Rios e Campolide. 
Cheguei a Sete Rios, subi em direcção ao eixo norte-sul e, mesmo à chegada ao eixo, um carro parado, uma ambulância do INEM e um homem no asfalto.

~

- Compraste-me o Bepantene para a minha ferida da borbulha?
- Não. Esqueci-me, não tive tempo, etecetera.
- Assim, nunca mais curo a minha borbulha...
- Olha, fiz-te as perninhas, não fiz? Toma lá dinheiro e vai à farmácia comprar a pomada. 
- OK.

Mas assaltam-me os fantasmas, os pavores, os pânicos, os dramas, as tragédias, as catástrofes, as desgraças, as calamidades, os terrores.

- Tem cuidado a atravessar. Olha que eu hoje já vi dois homens no asfalto.

Ele, que me sabe tão bem, lança-me aqueles olhos escuros que me enchem de luz e me esvaziam de negro, e responde, no vozeirão:

- Mas eu ainda não sou um homem. Podes ficar descansada.

Ela fala tanto

Estou tão cansada.
Ando a trabalhar demais. Sento-me aqui às 9 horas e saio daqui às 20. Às vezes, pego na enxada às 8 (se calha a ser sábado ou domingo) e deslargo às 10 da noite. Faço uns intervalos que me sabem a pouco, que nem um brilhozinho nos olhos e a saia rodada me podem valer, e volto para as teclas, que suplício de Tântalo, nem sei como é que ainda não tenho cara de desenterrada. Não me posso esquecer de agradecer a genética à minha mãe, quando voltar a vê-la. A ver se ponho isso num post-it. 


Entra e liga um turbo qualquer, desbobina uma matraca, destrava uma roda dentada. Que a filha fala muito alto, que já lhe disse que tem que falar mais baixo, que lá no bairro se ouve a voz da filha aos gritos ainda ela está longe de casa, que vai na rua e toda a gente ouve o que ela diz, que nunca fala para ela sem ser altíssimo, que já a levou à SAP, a ver se a médica lhe encontrava alguma coisa, que a médica não lhe encontrou nada dentro dos ouvidos, mas que ela berra, em vez de falar, que até o irmão também já fala assim, e põe a televisão muito alto, os dois vêem televisão com o som quase no máximo, e a música, então, nem se fala, já gritam os dois. 

E relata-me isto tudo de enxorrilho. 
Aos gritos.

[eu poupei-vos ao caps lock]

(Estou cheia de ruído.)

17/06/2015

Chico-smart não me tem em grande conta # 4


Estou farta deste gajo. Ando há semanas... não, ando há meses para sair do nível 65 do candy crush. Nunca estive tão perto como há bocadinho, ultrapassei os pontos e tudo, só me faltava limpar 4 candies, mas não, ele não podia permitir que eu fosse dormir descansada e feliz, e não frustrada e magoada, não era?
Já não lhe chega ser o brutamontes que é, na linguagem que usa comigo, para ainda ser este descavalheiro nas outras coisinhas.
Não sei o que é que virá a seguir. Provavelmente, deixa de me abrir as portas e de me dar passagem. Ou diz-me que eu estou gorda.
Cavalo.

Despida

Se não fosse trágica, seria cómica, a ideia de entrar nua num lar de velhinhos. Se me puser a pensar nisso, quase tudo o que é cómico tem algo de trágico, embora a inversa não seja verdadeira. Por isso é que nunca gostei de palhaços. Não é que tenha o terror da máscara. Mas ficou-me de uma vez, num mini-teatro que havia no Jardim Zoológico, sobrelotado de miúdos aos gritos, em que assisti a um espectáculo de palhaço rico e palhaço pobre, e nunca consegui ver ali outra coisa senão uma mulher e um homem, ela estridente, ele roufenho, cheios de rugas e impaciência. 

Mas é como me sinto, despida e despojada, cada vez que ali entro. Se também me puser a pensar nisso, não há, verdadeiramente, ali dentro, nada que seja rigorosamente trágico, ou sou eu que estou a perder o fiel de medição dos níveis. 

Pelo caminho, um aviso luminoso na autoestrada diz que, a dois quilómetros, se encontra um animal na estrada. Penso numa mosca, num passarinho pequeno, dá-me vontade de rir, mas, à cautela, olho para o conta-quilómetros, para estar atenta quando for a altura. Passados mil metros, vejo os restos, em carne viva, daquilo que me parece ser um cão de médio porte.

É isso. Não é tão nua quanto isso, é em carne viva que me ponho, e é por isso que tudo me parece tão irreal. Vou toda flores, vestido cai-cai, braços, ombros, pernas, tudo nu. Demasiada carne à mostra. Devia ter mais atenção ao que visto quando ali vou. As pessoas ainda estão vivas e nem toda a gente está a dormir.

Isso vem tudo de fora, diz-me a minha mãe, numa gargalhada, que eu, Pierrette, considero trágica. Respondo-lhe que tenho muito calor. 

Tenho calor. Está calor lá fora, eu sou hipertensa, estou uma pilha de nervos e, se as minhas inimigas que iludo que não tenho me vissem, muito gozariam de imaginar que é da idade. Possivelmente, é. Desde os tempos mais imemoriais da minha existência que tenho calor, sobretudo em locais onde ele não existe.

A menina vai para a praia?, pergunta-me a que tem cem anos. E eu, sem anos, respondo, estupidamente, 

Quem me dera o mar agora.

Vem aí a directora e manda-a vestir um casaco, insiste ela — e eu imagino o cómico que seria se isso acontecesse, e o trágico de me sentir morrer de frio. 

Por que é que Deus não me levou a mim, em vez da minha filha, que era tão nova?, teima ela em massacrar-me. Aquilo começa a encher-me de dores na carne à mostra, quero mandá-la calar-se, mas não posso, porque estou excessivamente ocupada a enxotar uma mosca que não me larga a pele exposta.

Não consigo tirar a vida a nada, tenho que abrir uma janela, a ver se o bicho voa daqui para fora.

Eu quero morrer, diz-me ela, com todas as letras, os olhos tão esbugalhados, que diria que o vai fazer no segundo seguinte. 

Não me faça isso aqui, nem agora, por favor. Espere que eu me vá embora — é o que me sai, outra vez estúpida.

Levanto-me, toda a sangrar, e voo dali — tomara que pela janela, atrás do bicho —, toda moribunda.